“- É perigoso não acreditar em uma coisa só porque provoca medo”
Catherine é uma jovem que sonha em abrir uma confeitaria com sua melhor amiga, e que só pensa em fazer doces. Essa atividade, no entanto, não é muito bem vista por sua mãe, que acha que a filha deve ser uma dama e que ela tem chances de se tornar a próxima Rainha de Copas, já que o Rei gosta de Cath e adora os seus doces.
Cath não pensa em casamento e um dia, em um dos bailes do rei, ela conhece Jest, o novo bobo da corte, por quem acaba se apaixonando. O amor é reciproco, mas logo os dois tem que enfrentar o Rei e todos os obstáculos que rondam o reino de Copas.
Sem Coração surge mais ou menos na esteira de livros como Wicked: A História Não Contada Das Bruxas De Oz e de filmes como Malévola e tem como principal ideia explicar como que uma vilã famosa se tornou aquela vilã. No caso desse livro, a vilã em questão é a Rainha de Copas, de Alice no País das Maravilhas.
O livro não se passa no País das Maravilhas, mas sim no reino de Copas, onde acompanhamos a jovem Cath, uma dama da sociedade, que também é a melhor doceira do reino. Sua mãe não gosta muito de ver a filha na cozinha o tempo todo, mas os doces de Cath são os favoritos do Rei de Copas, o que garante a jovem uma certa preferência no coração do monarca.
Todo o reino comenta que logo o Rei escolherá uma noiva e que Cath é a favorita, mas ela não pensa em casamento e tudo o que deseja é abrir uma confeitaria com sua criada e melhor amiga, Mary Anne. Em um dos bailes do Rei, ela conhece Jest, o novo bobo da corte, por quem ela se apaixona, mas não demora muito para que o pedido do Rei de fato seja feito e Cath passe a sofrer pressões dos seus pais para que aceite, ao mesmo tempo que lida com o seu sonho e com o seu amor por Jest.
Sem Coração usa vários elementos da história de Lewis Carroll, como por exemplo, o cenário, os soldados que também são cartas de baralho, algumas das criaturas que aparecem nos livros de Carroll, o jogo de xadrez, importante em Alice Através do Espelho e vários personagens do livro. O Rei de Copas, o gato de Cheshire, a lebre de março, o chapeleiro maluco e a lagarta são alguns dos personagens que também estão presentes nesse livro, além da própria Rainha de Copas, claro.
Meyer também cria uma série de outros personagens para compor a sua história e para se encaixarem na trama que ela quer contar. Tendo sido escrito no século XXI e tendo uma protagonista feminina parece quase natural que o livro parta para um ponto de vista um pouco mais feminista, mas essa é sem dúvida, um ponto alto da trama.
Cath, a protagonista, é inteligente, dedica, trabalhadora e não pensa em casar, mesmo vivendo em um mundo e em uma época onde, aparentemente, esse era o caminho natural para as mulheres. O único objetivo de vida de Cath é abrir uma confeitaria e trabalhar, nem mesmo a possibilidade de virar rainha, faz com que a protagonista desista de seus sonhos.
Até aí, a ideia de Meyer é interessante. Ela trabalha no universo dos contos de fadas – embora Alice no País das Maravilhas não seja exatamente um conto de fadas – mas apresenta uma personagem feminina que está claramente a frente do seu tempo. A autora também adiciona um romance e consequentemente, um triangulo amoroso.
O romance entre Cath e Jest até é bem desenvolvido e faz o leitor querer ler mais, e esse não é o problema de Sem Coração, uma vez que sabemos que Cath vai se tornar uma vilã e que talvez o caminho para isso seja um coração partido, mas o triângulo amoroso não convence. O Rei é descrito como um homem baixinho e gordinho, que é divertido e quase inocente, ele não é apaixonado por Cath e nem tem um ciúme mortal, como normalmente acontece em triângulos amorosos da ficção, ele simplesmente resolve pedir Cath em casamento porque a acha divertida e gosta dos doces que ela faz.
Por isso, conforme a trama vai se desenvolvendo no chavão clássico do casal apaixonado que não pode ficar junto, o leitor fica se perguntando exatamente porque Cath e Jest não podem ficar juntos, já que o Rei não ameaçou matar ninguém, Cath não é uma prisioneira e nem deve nada a ele, e na maioria das vezes, ele é descrito como um homem gentil e inofensivo. Tudo bem que Cath sofre pressão da sua mãe para que se case com o Rei e que Jest, como bobo da corte, seja empregado do Rei, mas nada disso parece forte o suficiente para justificar o suposto amor proibido dos dois.
Outra grande questão é que Sem Coração trabalha basicamente nos clichês, isso por si só não é um problema, se a trama ao redor desses clichês fosse criativa, mas não é o que acontece aqui. O leitor que já conhece outras histórias parecidas, deduz o que vai acontecer no meio do livro.
Cath também é uma personagem que está muito distante da Rainha de Copas do livro de Carroll. Não existe nenhum problema em criar em cima de personagens que existem, especialmente quando esses personagens foram escritos a muitos anos e já estão em domínio público, também é muito interessante essa onda de obras ficcionais que tem como intenção humanizar vilões – na maioria das vezes, mulheres – que antes eram tratados apenas como cruéis e terríveis. Isso dá mais profundidade a personagens que antes eram completamente planos.
Se a ideia é humanizar a Rainha de Copas, soa natural que Meyer a transforme em uma jovem encantadora e doce, mas a Rainha de Copas original era uma ditadora e Cath não tem nenhuma característica dessa personalidade, por isso, quando ela, finalmente se aproxima da personalidade da Rainha de Copas que nós conhecemos parece que a personagem mudou completamente, quando Meyer podia ter criado uma personagem que mesmo sendo gentil e doce, tivesse tendências ligeiramente autoritárias e dessa maneira, também criado uma personagem mais humana, que era o que o livro almejava desde o começo.
A leitura de Sem Coração é fácil e rápida, o livro é voltado para o público adolescente e por isso, é mais fácil agradar os leitores mais jovens. Os leitores mais experientes, no entanto, podem reconhecer aspectos de outras tramas e prever o final, o que pode dar uma desanimada.
O livro tem aspectos interessantes, que foram bem utilizados por Meyer e até explora o universo de Carroll de maneira instigante, mas ainda com respeito a obra original, o romance entre Cath e Jest é bem desenvolvido e prende o leitor, mas a história por si só, é bem bobinha. Como o livro se passa em um universo extremamente interessante e que permite que aconteça praticamente tudo, uma vez que é fantástico, Meyer perde várias oportunidades de transformar Sem Coração em um verdadeiro prólogo de Alice no País das Maravilhas.
Mesmo aproveitando de um bom cenário e de personagens bem-criados, Sem Coração apresenta mais do mesmo e perde muitas chances de se tornar um grande livro, com uma história em um universo maravilhoso.
Título no Brasil: Sem Coração
Título original: Heartless
Autor: Marissa Meyer
Tradução: Regiane Winarski
Gênero: Fantasia, Romance
Ano de lançamento: 2016
Editora: Rocco Jovens Leitores
Número de Páginas: 416
Foto: Fernanda Cavalcanti