Adaptações, série

Série: Alta Fidelidade ( 1ª temporada), 2020

Rob (Zoë Kravitz) é dona de uma loja de discos em Nova York, obcecada por música e passa boa parte de seu tempo fazendo listas. Recentemente ela terminou seu noivado com Mac (Kingsley Ben-Adir), o que a levou a questionar todos os seus relacionamentos.

Munido da lista dos seus cinco piores términos, Rob resolve entrar em contato com todos os seus ex, para tentar entender porque nenhum de seus relacionamentos deu certo, ao mesmo tempo que lida com seus colegas de trabalho, Cherise (Da’Vine Joy Randolph) e Simon (David H. Holmes) e com as dificuldades de ser uma jovem adulta.

Alta Fidelidade é inspirada no livro de mesmo nome, de Nick Hornby.

Modernização

Alta Fidelidade é uma série bem fiel ao livro em que foi inspirada. A série também acompanha um personagem jovem, que começa a se questionar sobre a sua vida e sobre os seus relacionamentos, o que a série faz de diferente é que ela dá uma modernizada em alguns aspectos da trama.

Para começo de conversa, ela propõe uma troca de gêneros que afeta boa parte dos personagens. Rob, que no livro é um homem, aqui é uma mulher de vinte e nove anos, junto com isso, os ex que ela coloca na sua lista, se transformam em homens, com exceção de Kat (Ivanna Sakhno), – que no livro se chama Charlie – o que dá uma dimensão ainda maior a protagonista.

Os colegas de trabalho de Rob também sofrem com essa mudança. Barry, o funcionário chato de Rob, se torna Cherise e Dick, o funcionário tímido, continua homem, mas nessa versão é Simon, um homem gay, que namorou Rob e também está na lista dos piores términos dela.

Esse é um padrão que segue toda a série e é por si só, uma ótima ideia. Alta Fidelidade então, dá o protagonismo para uma mulher, que também é negra e bissexual, e adapta toda a trama do livro para os olhos dessa personagem. Para além disso, a série traz outras mulheres em posição de destaque, como Cherise, que também é uma mulher negra, e Lily (Dana Drori), a atual noiva de Mac, e personagens não heterossexuais, como a própria Rob e Simon, o que não aparece no livro.

É interessante também que o roteiro não fuja de questões menos lisonjeiras da personalidade de Rob, que estão presentes no livro. O protagonista do livro vive metendo os pés pelas mãos e embora veja defeitos em todas as suas parceiras, não consegue enxergar os seus próprios, ele é egoísta e muitas vezes não se importa com os sentimentos dos outros.

Todas essas características são melhores aceitas em personagens masculinos, mas Alta Fidelidade impõe todas essas qualidades a Rob. Ela é egoísta, ela usa as pessoas, ela ignora os seus amigos e passa por cima dos outros para conseguir o que quer. E como o protagonista do livro é incapaz de ver que muitos de seus relacionamentos não deram certo por coisas que ela mesmo fez.

A série também se beneficia da tecnologia dos dias de hoje, então embora Rob ainda seja dona de uma loja de discos – o que não soa datado devido ao valor que o vinil adquiriu com o tempo – ela não faz mix tapes, ela faz listas no spotify, quando ela descobre que Mac tem uma nova namorada, ela não precisa persegui-lo pela cidade, ela precisa apenas olhar as redes sociais do ex-namorado.

Separações são um saco

A trama, no entanto, continua mais ou menos a mesma. Depois que ela e Mac terminam, Rob promove o ex ao número cinco da sua lista de piores términos e, quebrando a quarta parede e conversando diretamente com o telespectador, nos conta sobre cada um desses relacionamentos que não deram certo. Depois ela resolve que vai entrar em contato com eles para entender o que deu errado na sua relação com Mac.

Em uma série, existe muito mais espaço para explorar tanto a história de Rob com cada ex, como o reencontro dela com eles, diferente do que acontece no filme, por exemplo, onde só alguns do ex de Rob (John Cusack) ganham mais destaque. Aqui cada ex ganha quase um episódio, onde acompanhamos como Rob conheceu a pessoa em questão, como o relacionamento começou, acabou, que se dão em um flashback e como é o encontro da protagonista com a pessoa, no momento em que a série se passa, ao mesmo tempo, outras coisas acontecem na vida de Rob, que não tem qualquer relação direta com aquele ex em especial.

Mac, o último ex e que é consideravelmente o mais importante, ganha muito mais tempo de tela. Sabemos como eles se conheceram, como a relação era, como ela a pediu em casamento, mas só sabemos como eles terminaram nos últimos episódios, e também acompanhamos os encontros dos dois atualmente, uma vez que o irmão de Rob, Cameron (Rainbow Sun Francks) é o melhor amigo de Mac.

Outro ex que ganha bastante destaque é Simon, que embora esteja na lista de Rob, é o único com quem ela terminou em bons termos, já que eles terminaram porque ele se descobriu gay e que de ex-namorado, ele passou a melhor amigo. Simon, que é um personagem muito bem escrito e interessante, tem um certo protagonismo e ao mesmo tempo que acompanhamos a vida de Rob, também acompanhamos os seus desenlaces românticos, com Blake (Edmund Donovan), o rapaz que trabalha na cafeteria próxima da loja de Rob. No final da série, ele ganha o seu próprio episódio, onde nos moldes de Rob, ele fala com a câmera e nos conta sobre os seus próprios cinco piores términos, dos quais, curiosamente, Rob nem faz parte.

Embora troque os gêneros de seus personagens e modernize a trama, Alta Fidelidade mantém o sentido da obra original, que é falar sobre relacionamentos e suas dificuldades, uma vez que relacionamentos e os seus términos, são difíceis para todos, sejam homens, mulheres, heterossexuais ou homossexuais.

Vida adulta

Outro aspecto que está presente no livro e no filme, mas em quantidades bem menores, é a vida adulta. O protagonista do livro é um homem adulto, que muitas vezes se comporta como um crianção, é justamente por isso, que ele culpa suas ex-namoradas por todas as coisas que deram errado na sua vida. Ele cresce e evolui durante a trama, até que percebe que ele é responsável pelo que faz, inclusive em relação aos seus relacionamentos, mas essa é uma questão que não é tratada diretamente na trama e que fica mais como pano de fundo.

Mais uma vez essas características são mais aceitas em personagens masculinos – que quando retratados como imaturos e ainda apaixonados por ex-namoradas que cansaram deles, são vistos como “fofos”, “adoráveis” e “românticos”, como acontece no próprio Alta Fidelidade e em filmes como 500 Dias Com ela, por exemplo, diferente de em personagens femininas, que são vistas como “crianças”, “obcecadas” e “loucas” – por outro lado, essa nova onda de audiovisual com fortes pegadas feministas e que busca cada vez mais trazer personagens femininas realistas beneficia muito a personagem de Rob.  

Diferente do Rob do livro, que seria adulto nos anos 90, e do Rob do filme, que teria sido criança nos anos 80, adolescente nos anos 90 e adulto nos anos 2000, a Rob da série, foi criança nos anos 90, adolescente nos anos 2000 e adulta, nos anos 2020, o que a situa perfeitamente na categoria dos millennials e traz à tona outro aspecto: a fama dessa geração de não conseguir se tornar adulta.

Rob é uma perfeita millennial, ela mora sozinha, mas não tem qualquer capacidade de manter uma casa, ela é dona da sua própria loja de discos, que está sempre à beira da falência, ela se coloca em relacionamentos, que ela sabe desde o começo que não vão dar certo e em determinado momento da série, sai com um rapaz (Thomas Doherty) de dezoito anos, que para ela soa maduro e próximo da sua própria idade. Rob basicamente se comporta como uma adolescente, uma vez que ao invés de sentar e se organizar para entender o que ela fez de errado em seus relacionamentos, ela passa a vida toda colocando a culpa nos seus ex.

Quando Mac a pede em casamento, Rob surta, porque embora eles estejam em um relacionamento sério a um tempo, ela não se sente pronta para casar.

Alta Fidelidade também apresenta outros millennials que estão tão perdidos quanto Rob, como Cherise, que diz que é musicista, mas que não tem coragem de mostrar seu trabalho para ninguém, nem mesmo para Rob e Simon e Simon, que até pouco tempo atrás nem sabia que era gay e que mesmo com trinta anos, ainda tem dificuldades para entender um flerte e retribui-lo.

Ao mesmo tempo, a série tem outros personagens, que confrontam isso diretamente, como Mac, que pede Rob em casamento e depois que eles terminam não demora muito para arrumar outra noiva, deixando claro que ele se sente mais que pronto para casar e Cameron, o irmão de Rob, que está prestes a ser pai. Mesmo ele, que parece mais do que feliz com o nascimento da filha, tem seu momento de fraqueza e passa uma noite inteira no bar, se despedindo dos seus dias sem responsabilidade, em determinado momento da série.

Rob, por outro lado, se recusa a crescer. Ela não quer ter responsabilidades, nem com a loja, nem com seus relacionamentos, e nem com os seus amigos, a quem ela não dá atenção. Essa é uma questão que fica óbvia no episódio Fun Rob, em que a protagonista completa trinta anos, foge de todas as festas e termina a sua noite, bêbada nas escadas do prédio, chorando e questionando toda a sua vida.

Aspectos técnicos de Alta Fidelidade

O grande triunfo de Alta Fidelidade é o seu roteiro, que embora seja simples, é muito fácil de se identificar e por isso é realista e atemporal. O livro de Hornby foi publicado em 95 e se passa na Inglaterra, enquanto o filme é de 2000 e se passa em Chicago, já a série, é de 2020, e se passa em Nova York, no entanto, a obra original e as duas adaptações soam todas realistas e verdadeiras, porque a história de Rob faz sentido em todas essas conjunturas e faria sentido se fosse adaptada de novo, daqui a vinte anos e se passasse em qualquer outra cidade do mundo. Todo mundo tem problemas de relacionamentos e tem ex que poderiam facilmente figurar na lista de Rob, por isso, a trama é tão acertada.

A série mantém tudo isso, e dá mais espaço para esses ex aparecerem e reaparecerem, ao mesmo tempo que acrescenta outros interesses amorosos de Rob, como o músico Liam e Clyde (Jake Lacy), com quem Rob pisa na bola uma série de vezes. Outro grande acerto é a troca de gêneros dos personagens, que traz a trama mais próxima do universo feminino, embora em Alta Fidelidade essa nem seja uma questão muito debatida. Não que não fosse possível se identificar com o personagem masculino do livro e do filme, mas é interessante dar a uma mulher o protagonismo dessa história.

Alta Fidelidade ganha muito com a variedade de raças e sexualidades que apresenta. Essas são questões que nem estão presentes no livro, mas que em uma trama que se passa em 2020, fazem muito sentido. O livro e o filme são focados em homens brancos e heterossexuais, a série sai completamente fora desse espectro.

No entanto, Alta Fidelidade ainda é uma boa adaptação, porque não só mantém quase todos os aspectos da obra original, como nos apresenta uma Rob que é a imagem cuspida e escarrada do personagem do livro. Rob é egoísta, infantil e autocentrada, mas ela também é carismática e a plateia consegue compreende-la e se identificar, mesmo quando ela está sendo uma babaca. Rob não é uma mocinha típica, que nunca erra e é ótimo assistir a uma personagem feminina assim.

Boa parte desse carisma se deve, claro, a Zoë Kravitz, que entrega uma Rob perfeita. Soa quase absurdo pensar em um Rob que não é o John Cusack, porque esse é um personagem que parece ter sido feito para ele e que foi transportado quase a perfeição para o filme, mas Kravitz se sai muito bem e abre uma brecha que faz a gente acreditar que o personagem também foi feito para ela.

Outro ator que se sai muito bem no seu papel é David H. Holmes, o seu personagem é basicamente o melhor amigo gay, mas ele foge de todo e qualquer clichê do gênero. Ele não dá conselhos amorosos ou sexuais, mesmo porque ele parece ainda mais perdido que Rob, ele não é feminino ou afeminado, ele não liga para moda, na realidade ele se veste bem mal e em determinado momento é dito que ele só tem duas camisetas, ele não gosta de músicas que são, geralmente associadas aos gays e ele não gosta de musicais, ele até fala mal do gênero.

Diferente de muitos personagens gays, que são apresentados como espalhafatosos e extremamente seguros de si, Simon é tímido, inseguro e retraído. Ele gosta do rapaz que trabalha na cafeteria perto da loja, mas não percebe que a atração é reciproca, até que o rapaz fale isso.

Simon também é a relação mais profunda que Rob tem, fora da família. Como ele mesmo diz, eles ainda se comportam como namorados, sem as relações românticas e ele é o único ex de Rob, que está na lista, mas com quem ela mantém contato. A relação não é muito reciproca, uma vez que muitas vezes, Rob não escuta o que ele fala e nem liga para o que acontece na vida dele, mas isso, não parece incomodar Simon, que continua um amigo dedicado.

E é por isso que é muito fácil gostar de Simon, ele é um underdog, que não recebe o que merece nem no trabalho, nem nos relacionamentos e nem dos amigos, e mesmo assim, continua fiel e presente. O exato oposto, se dá com Cherise, a outra funcionaria de Rob, que é chata a ponto de se tornar insuportável, mas que com o tempo, mostra uma insegurança que ela mascara com toda a agressividade. A audiência passa boa parte da série com raiva dela, o que é um mérito de Da’Vine Joy Randolph, porque o personagem do livro é igualmente intolerável.

A trilha sonora e a música, de uma maneira geral, é algo que é muito importante em Alta Fidelidade e a série parte desse mesmo princípio. Rob é dona de uma loja de discos e é apaixonada por música, ela passa seu tempo livro fazendo listas de assuntos que envolvem músicas e músicos, e listas no spotify. Na série, ela faz tudo isso, ao mesmo tempo que conta detalhes dessas listas para a plateia.

Além disso, ela, os amigos, os ex e os pretendentes conversam sobre música o tempo todo e na maioria das vezes, quem sabe mais sobre o assunto é Rob. Em uma das melhores cenas da série, com a qual qualquer mulher pode se identificar, Rob e Clyde encontram um homem mais velho, que começa a falar de música, apenas com Clyde, tendo a certeza que ele entende mais de música que Rob. Rob tenta entrar na conversa diversa vezes e é sumariamente ignorada pelo homem, até que em determinado momento, ela mostra que não só sabe sobre música, como também sabe mais que o homem mais velho, já que o corrige em relação a algumas datas.

A série faz citações a diversos músicos como Fleetwood Mac, David Bowie, Beyoncé, Beatles, e até Os Mutantes e Caetano Veloso. Outro benefício dessa nova versão é que ela tem ainda mais terreno para as suas citações, já que vinte anos se passaram desde o filme e muitas novas músicas e novos artistas surgiram. A série não parte da premissa errada que “música boa é música antiga” e cita artistas de todas as épocas.

A série ainda conta a participação de Debbie Harry, que substitui Bruce Springsteen, citado no livro e que faz uma pequena aparição no filme.

A trilha sonora também é interessante e completa a trama, entre as músicas que fazem parte dela estão I Can’t Stand The Rain, I’ll Make Love to You, – cantada por Thomas Doherty – Come On Eileen e I Believe (When I Fall in Love It Will Be Forever) – cantada por Da’Vine Joy Randolph – que faz uma referência direta ao filme.

Quando troca os gêneros e as sexualidades de seus personagens, e dá chances para que novas perspectivas sejam contadas, Alta Fidelidade traz para os dias de hoje uma trama que já era universal na sua essência e deixa a história de Rob ainda mais atemporal.

Elenco: Zoë Kravitz, Jake Lacy, Da’Vine Joy Randolph, David H. Holmes, Kingsley Ben-Adir

Gênero: Comédia, Drama

Duração do episódio: 30min

Número de episódios: 10

Ano: 2020

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