2020 demorou e trouxe dificuldades para todo mundo, em um ano como esse, que quase não pudermos sair de casa e que fomos assolados pelo medo em várias esferas, nada foi mais importante que a arte, inclusive para aqueles que normalmente a desmerecem.
A literatura – assim como o cinema e o teatro – foi uma das únicas coisas que me impediu de surtar completamente durante uma quarentena que já dura dez meses, cheia de incertezas e sem muitas esperanças.
Eu li 99 livros em 2020 e bati meu recorde de leituras em um ano (que era 95), embora eu não tenha conseguido bater a minha meta de 100 livros.
Enfim, 2020 finalmente acabou e alguma esperança, ainda que pequena, surge no horizonte, e a literatura permanece como uma das poucas coisas que se mantém, mesmo que o mundo esteja acabando.
E como já é tradição aqui no Além da Toca do Coelho, chegou a hora dos melhores livros desse ano terrível.
Sempre lembrando que as opiniões são completamente pessoais e baseadas nos meus gostos, a ideia não é desmerecer qualquer outro título que não entrou na lista, e que os livros presentes não foram necessariamente publicados em 2020, mas sim foram lidos por mim no ano passado.
1 – Coisa que Perdemos no Fogo (2016), Mariana Enríquez: Coisas que Perdemos no Fogo é uma coletânea de contos que usam do terror, do fantástico e do sobrenatural para falar de questões sociais da Argentina, mas que de certa maneira, falam também com a realidade brasileira.
O conto O Quintal da Vizinha, por exemplo, apresenta uma assistente social, que vê uma criança acorrentada na casa do vizinho e que resolve investigar, sem pensar nas consequências que isso pode trazer para a sua vida. Já no conto que dá título ao livro, mulheres começam a atear fogo no seu próprio corpo, como forma de protesto, enquanto a autora fala sobre a violência doméstica e o feminicídio.
2– Do que é Feita uma Garota (2015), Caitlin Moran: Johanna Morrigan é uma adolescente tímida e desajeita, que depois de participar de um programa, vira piada na escola. Johanna então, decide mudar completamente e se transforma em Dolly Wilde.
Dolly é o oposto de Johanna: descolada, divertida, sensual e cheia de amigos. Ela arruma um emprego em uma revista de música e começa a conhecer as pessoas mais famosas e importantes da Inglaterra, até que percebe que Dolly não reflete nada da sua personalidade e que talvez, essa não seja a pessoa que ela quer ser.
Ela então, precisa balancear Johanna e Dolly, enquanto tenta crescer e se tornar a adulta que sonha em ser.
Do que é Feita uma Garota é um grande romance de formação, com uma protagonista divertida e completamente fora dos padrões e com muitas referências culturais.
3- Tomates Verdes Fritos no Café da Parada do Apito (1987), Fannie Flagg: Evelyn Couch é uma dona de casa sem muitas expectativas, que sempre acompanha o marido a uma casa de repouso onde a sogra mora. Lá, ela conhece a sra. Threadgoode, uma senhora solitária que adora conversar.
As duas se tornam amigas e a sra. Threadgoode conta a Evelyn sobre Ruth e Idgie, um casal que cuidava do famoso Café na Parada do Apito.
Intercalando a vida de Evelyn, da sra. Threadgoode, de Ruth, de Idgie e de uma série de outros personagens, Tomates Verdes Fritos na Parada do Apito traz à tona temas como a amizade entre mulheres, o amor entre mulheres, homofobia, relações familiares, racismo e muitas outras coisas, enquanto apresenta personagens cativantes e uma história emociante.
4- Horror Noire (2011), Robin R. Means Coleman: Horror Noire é uma pesquisa bem-feita e cuidadosa do cinema de terror desde dos anos 1890 até os dias de hoje. O livro se concentra na representação negra dentro do gênero e por meio de exemplos nos fala como o cinema muitas vezes foi usado para perpetuar estereótipos racistas e como em outros momentos, ele foi o veículo para que a população negra pudesse passar sua mensagem.
Claro que Horror Noire possivelmente vai agradar mais quem gosta de terror, mas o livro é extremamente interessante para quem se interessa por cinema de uma maneira geral e por questões sociais, além da leitura ser muito prazerosa.
5– O Corpo Dela e outras Farras (2017), Carmen Maria Machado: Seguindo o mesmo preceito de Coisas que Perdemos no Fogo, O Corpo Dela e outras Farras é um livro de contos fantásticos e sinistros que usam do gênero para falar de problemas sociais, de gênero e de sexualidade.
Os contos do livro são, em sua maioria, protagonizados e muitas vezes narrados por personagens femininas, que muitas vezes também são homossexuais ou bissexuais e que enfrentam problemas comuns, mas que aqui tomam proporções surreais.
Em Mulheres de Verdade têm Corpo, uma jovem vendedora de uma loja de roupa, descobre que as clientes da loja estão, pouco a pouco desaparecendo e que esse é um destino que espera todas as mulheres da região. Oito Bocados também aborda a maneira com que as mulheres se veem e como lhes é cobrado um corpo magro e perfeito, já que acompanha uma mulher que faz uma cirurgia de redução de estomago e que volta para casa com um parasita, que não para de perturba-la.
Já O Ponto do Marido acompanha um casal desde o seu namoro, em que a mulher sempre parece atender o que o marido quer, a única coisa que ela lhe pede é que ele não retire uma fita de seda que ela usa sempre no pescoço, mas esse é o pedido que o marido mais faz.
Embora O Corpo Dela e outras Farras seja um livro com perspectivas obviamente feministas, não só pelos seus temas, como também pelo protagonismo feminino, ele não é um livro panfletário e nem teórico.
6 – Heroes And Villains: The True Story Of The Beach Boys (1986), Steven Gaines: Heroes And Villains: The True Story Of The Beach Boys é uma biografia que acompanha a vida dos integrantes dos Beach Boys, relatando episódios das suas vidas profissionais e pessoais.
Embora o autor dê preferência a algumas histórias, como as de Dennis Wilson e Brian Wilson, o livro cobre uma vida inteira e não foge de assuntos polêmicos, como a esquizofrenia de Brian, as brigas na banda, os vícios de Dennis e sua estranha relação com a família Manson.
7– Mau-Olhado – A Tragédia Rondava a Casa de Julia (1975), Peter Straub: Julia Lofting é uma mãe de luto, que depois da morte de sua filha Kate, se afasta de tudo e todos e vai viver em uma casa grande em Londres. Logo que ela chega, no entanto, ela nota uma garotinha extremamente parecida com Kate rondando o local.
Julia tem certeza que aquele é o fantasma de Kate, querendo cobrar sua mãe por sua morte, mas quando pesquisa sobre o passado da casa, descobre que ela já abrigou outra mãe, que também perdeu uma filha. Essa filha, diferente de Kate, era uma criança cruel e terrível.
Julia mergulha no passado da casa, ao mesmo tempo que tenta lidar com o seu luto, o medo do próprio marido e uma paixão um tanto estranha pelo cunhado, enquanto Straub nos apresenta uma visão completamente inovadora e assustadora das histórias clássicas de casas assombradas.
8- Mate-me Por Favor (1996), Legs McNeil e Gillian McCain: Mate-me Por Favor é o relato não oficial do movimento punk. Através de entrevistas com várias pessoas como Iggy Pop, Lou Reed, Debbie Harry, Pattie Smith e outros, o livro cobre o começo, o meio e o legado do movimento, enquanto fala sobre a sociedade onde isso se deu.
A leitura é divertida, informativa, prazerosa e retrata uma série de estrelas legendarias como pessoas comuns.
9– 1965: O Ano Mais Revolucionário da Música (2015), Andrew Grant Jackson: 1965: O Ano Mais Revolucionário da Música é exatamente o que o título promete: uma grande história da música em 1965.
Dividido entre os meses do ano, o livro também contextualiza o que aconteceu antes e o que aconteceu depois, assim como fala de todas as mudanças sociais e comportamentais que a década de 60 trouxe.
10 – Hellraiser – Renascido do Inferno (1986), Clive Barker: Juliae seu marido, Rory se mudam para a casa que ele herdou, certos de que tem a vida perfeita. Julia no entanto, se sente infeliz e irritada com o marido.
Não demora muito para que ela descubra que seu cunhado, Frank, com quem ela já teve um caso, está preso em outra realidade que parece ser o inferno, mas que sua alma, ainda ronda a casa. Para escapar, Frank precisa que Julia traga outros corpos que possam ocupar o lugar dele.
Como já é comum na obra de Barker, Hellraiser- Renascido do Inferno é uma mistura de terror, gore e sexualidade, onde uma coisa puxa a outra a um caminho sem volta, cheio de medo e agonia, além de ser uma grande metáfora para a culpa pela liberdade sexual ou pela homossexualidade.
Foto: Fernanda Cavalcanti