“Mas a fascinação é a irmã gêmea do medo” – A Vida de Chuck
Em sua mais recente coletânea de contos, Stephen King apresenta quatro histórias curtas que abordam temas como amizade, medo, luto e amor, sem fugir dos seus temas comuns, como o sobrenatural e a morte.
Com Sangue tem apenas quatro contos e isso parece ser pouco, ainda mais para King que é conhecido por escrever muito e com bastante rapidez, mas todos os contos do livro são bem longos, e são quase tão bem desenvolvidos quanto um romance, por isso tomam um certo tempo de leitura.
O primeiro conto, O telefone do Sr. Harringan acompanha um garoto que é contratado para ler para um senhor e os dois acabam ficando amigos. O Sr. Harringan tem o costume de mandar cartões em datas comemorativas e junto com os cartões, ele manda raspadinhas, um dia, o garoto ganha uma boa quantia com uma delas e resolve presentear o Sr. Harringan com um IPhone.
O Sr. Harringan é avesso a tecnologia, mas acaba gostando da praticidade que o telefone lhe traz e aceita o presente, mas o aparelho ainda vai servir a um proposito macabro ao longo da vida do protagonista.
O telefone do Sr. Harringan acompanha o protagonista durante toda a sua vida e passa por momentos importantes, ao mesmo tempo que traz os aspectos sinistros aos poucos. É interessante também a maneira com que King usa a tecnologia no conto, provando que essa é uma história relativamente atual, já que se passa no começo dos anos 2010.
O segundo conto, A vida de Chuck é uma história que engana o leitor, ele nos leva a pensar que estamos lendo um conto de terror, mas aos poucos vamos percebendo que não é bem isso e que a história fala de algo bem mais profundo.
Na primeira parte acompanhamos uma cidade que está se desfazendo, dando ao leitor a sensação de que o mundo está acabando, mas na segunda e na terceira parte acompanhamos a vida de Chuck a partir da sua infância, e as três partes vão se juntando de uma maneira inesperada.
A vida de Chuck é um conto que não é bem de terror e na verdade, vai se mostrando cada vez mais bonito e delicado. Isso não quer dizer que ele não tenha questões sobrenaturais e nem que não seja assustador, o conto só tem uma maneira diferente de mostrar isso.
O terceiro conto do livro, Com Sangue, também dá nome a coletânea, é o maior do livro e tem ares de romance. É importante falar que essa trama está ligada ao livro Outsider e com a Trilogia Bill Hodges, portanto tem spoilers nesse conto. Quem não leu as outras duas histórias não vai ficar perdido – eu por exemplo, não li a trilogia Bill Hodges -, mas pode pegar informações que não gostaria.
Nesse conto uma escola infantil é alvo de um ataque a bomba, que mata vários e deixa uma série de feridos, e a noticia chama a atenção da detetive particular Holly Gibney, que acha o caso parecido com outro caso que ela já investigou. Holly mergulha na história, disposta a tudo para desvendar esse mistério, que tem potencial de mudar a visão que ela tem do mundo.
O conto parece ser de suspense ou policial, mas ele tem aspectos do terror e ainda se embrenha na vida pessoal de Holly, que é tão bagunçada quanto o caso que ela investiga.
Com Sangue é um conto muito prazeroso e o leitor tem a sensação de que está lendo um livro de crime real, o fato dele ser grande não incomoda, já que logo mergulhamos na história junto com sua protagonista.
O último conto, Rato, fala sobre Drew Larson, um escritor de contos que sonha em escrever um romance. Ele já tentou algumas vezes, mas sempre acaba tão focado no livro que acaba fazendo mal a si mesmo e a sua família e nunca termina o romance.
Dessa vez, no entanto, ele tem certeza que tem o romance perfeito dentro da sua cabeça e resolve ir para a cabana isolada de seu pai afim de escrever o livro sem interrupções e sem prejudicar ninguém. Uma vez lá, Drew volta a lutar com os mesmos demônios, até que uma oferta sinistra lhe é feita e ele precisa decidir se o seu romance é mais importante do que outras coisas na sua vida.
Rato tem um tom de conto de fada e é o conto que mais lembra o estilo tão conhecido de King, ele fala de assuntos que aparecem na obra do autor com bastante frequência, como o bloqueio criativo e o trabalho do escritor, mas claro, com uma aura um pouco mais macabra.
De uma maneira geral, Com Sangue é uma coletânea com bons contos, que possivelmente vai agradar os fãs de King, mesmo que seu trabalho mais recente seja bem diferente do seu trabalho de começo de carreira e que o autor tenha deixado os monstros clássicos e o medo raiz para traz a um tempo e agora se concentre em medos mais próximos de nós como a morte – a nossa e a de pessoas que amamos -, o convívio em família e em amigos e o fracasso pessoal.
Quem espera um terror sanguinário pode se decepcionar, Com Sangue é um livro mais maduro de King, que não quer só nos assustar, mas sim nos surpreender e nos fazer pensar. Os leitores constantes de King sabem que a ideia de que ele só escreve terror é errada e estereotipada e que o autor tem outras obras onde trabalha o medo de maneira bem mais humana e onde apresenta histórias que são muito mais emocionantes do que assustadoras, como acontece por exemplo, em Quatro Estações e que mesmo os seus romances mais assustadores trazem temas realistas como pano de fundo, como em O Cemitério, onde ele fala sobre o luto e a dificuldade de aceitar a morte de pessoas amadas, ou em A Coisa, onde ele fala sobre machismo, racismo, homofobia, pedofilia, abuso infantil e violência contra a mulher, mas Com Sangue não é um livro que tem tanto sangue assim e onde o terror é mais palpável e muito próximo do leitor, temas que parecem interessar o autor nos dias de hoje.
Com Sangue é um livro relativamente grande, mas como ele apresenta várias histórias, ele não é denso, o leitor pode facilmente mergulhar em uma história e então, quando ela acaba, já se sentir pronto para afundar na próxima e assim por diante. A escrita é clássica de King, cheia de voltas no tempo, onde ele explica toda a vida pregressa de personagens coadjuvantes, o que geralmente gera críticas, mas que certamente agrada quem gosta do autor e a leitura é prazerosa e rápida, como acontece com frequência nas obras de King, é muito difícil soltar o livro antes do final.
Talvez Com Sangue não seja a escolha ideal para quem está começando a conhecer a obra do autor, afinal, qualquer pessoa que começa a ler Stephen King, quer ler um livro de terror, mas é quase impossível não agradar os fãs, mesmo que o terror não esteja explicito, ele está presente.
Com Sangue apresenta quatro contos que transitam entre o terror, o drama e o suspense, que podem assustar e emocionar quase na mesma medida e que provam que Stephen King é muito mais do que só um escritor de terror – embora ele seja muito bom nisso também. – .
Título no Brasil: Com Sangue
Título Original: If It Bleeds
Autor: Stephen King
Tradução: Regiane Winarski
Gênero: Contos, Terror, Thriller
Ano de lançamento: 2020
Editora: Suma
Número de Páginas: 400
Foto: Fernanda Cavalcanti
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