“É tolice brincar com quem tem poder absoluto sobre você. Eles não gostam; pensam que você não compreende toda a extensão de seus poderes”.
Quinze anos depois dos acontecimentos de O Conto da Aia, Tia Lydia, uma das supervisoras das Aias, conta a sua história através de um texto que ela chama de Testamentos. Ao mesmo tempo, a jovem Agnes Jemima, que tem uma vida privilegiada em Gilead, perde sua mãe e cai na mira da madrasta, que deseja casá-la com um homem muito mais velho, com a intenção de se livrar da enteada.
Enquanto isso, em Toronto, longe da república de Gilead, Daisy é uma adolescente que vive uma vida comum com seus pais Neil e Melanie e que é terminantemente contra a política de Gilead, mas que logo descobre que seu passado está conectado ao lugar.
Na continuação de O Conto da Aia, obra prima de Margaret Atwood, acompanhamos o que parece ser os últimos momentos da república de Gilead, através dos olhos de três mulheres aparentemente distintas.
Os Testamentos é a continuação de O Conto da Aia, e também se passa no mundo diatópico de Gilead, onde as mulheres perderam todos os seus direitos e vivem de acordo com o que os homens de suas vidas determinam, o nível de fertilidade entre a população feminina também diminuiu consideravelmente, por isso, as mulheres que ainda podem ter filhos são consideradas Aias e são propriedades dos homens da casa onde pertencem, servindo como barrigas de aluguel para o casal que vive ali. Em O Conto da Aia acompanhamos Offred – o nome significa “of Fred”, ou seja, “de Fred”, o homem que é dono da casa onde ela vive -, uma Aia, que conta como a república de Gilead foi instaurada e como ela passou de uma mulher livre e independente para uma propriedade, que passa por abusos diariamente. Também é importante ressaltar que ambos os livros se passam em um futuro distópico não determinado, e não no passado, como pode parecer.
Mas Os Testamentos não é uma continuação direta de O Conto da Aia, seja na diferença de anos em que os dois livros foram publicados – O Conto da Aia foi publicado em 1985 e Os Testamentos em 2019 –, seja na sua trama. Os Testamentos não acontece exatamente depois que O Conto da Aia termina e Offred, a protagonista do primeiro livro, não é nem uma personagem nesse livro, embora exista uma relação entre essa trama e a trama dessa personagem.
Os Testamentos têm três protagonistas, que narram suas histórias de três formas diferentes. A primeira delas é Tia Lydia, que também está presente em O Conto da Aia, e que lá é uma espécie de vilã, que reprime, pune e “domestica” as Aias, Tia Lydia faz parte do regime de Gilead e não só parece concordar com todos os absurdos que são praticados lá, como também é terrivelmente cruel, ela é, inclusive, temida entre as Aias. Em Os Testamentos, no entanto, lemos uma espécie de diário de Lydia, onde a personagens nos relata como Gilead começou de um ponto de vista diferente do de Offred.
Lydia era uma juíza bem-sucedida, que acreditava nos direitos femininos, mas que como todas as mulheres, perdeu seus direitos depois da instauração de Gilead e depois de ser presa e torturada, acabou aceitando cooperar com tudo aquilo. O ponto de vista de Lydia é interessante porque vemos a personagem, que é uma vilã terrível no livro anterior, de outra maneira, aqui ela claramente não compactua com o regime, mas é uma mulher que não teve escolha, ou ela ajudava, ou ela morria. Lydia também nos fala dos absurdos, hipocrisias e corrupção presente em Gilead e fica claro que ela tem planos de derrubar o regime, e ela tem a vantagem de estar dentro dele. Claro que ela ainda é uma personagem que causa raiva para quem leu O Conto da Aia, mas é importante lembrar que essas são obras que falam sobre a condição feminina nessa sociedade – e automaticamente na nossa, ainda que de maneira exagerada – e que provam que Gilead é injusta com todas as mulheres: seja Lydia, que precisa ajudar o regime que despreza para sobreviver, seja Offred, relegada ao papel de escrava sexual e propriedade, sejam as esposas dos homens poderosos, que não tem voz, seja Agnes, a outra narradora de Os Testamentos, que vive uma vida privilegiada, mas que não pode decidir sobre o seu próprio destino, sejam as cozinheiras dos homens ricos, que também são escravas, mas em condições um pouco melhores que as das Aias.
A segunda protagonista é Agnes, que nos conta sua história em uma espécie de depoimento. Ela é filha de um homem poderoso, Kyle, por isso, frequenta uma escola cara que só lhe ensina como ser uma esposa, afinal de contas, é isso que o futuro reserva para ela: o casamento com outro homem poderoso, onde ela também será uma propriedade e a torcida para que ela possa ter filhos biológicos e não precise de uma Aia. Quando a mãe de Agnes morre, seu pai rapidamente se casa com Paula, uma viúva, que arruma uma Aia, que dá à luz a um filho, Mark.
Agnes se torna um problema e Paula convence o marido a casá-la o mais rápido possível. O escolhido é o comandante Judd, um homem extremamente poderoso, que já ficou viúvo uma série de vezes e que cada vez se casa com uma menina mais nova, mas Agnes não tem nenhuma vontade de se casar e resolve se tornar uma Tia para fugir do casamento e é assim que ela conhece Tia Lydia. O ponto de vista de Agnes nos mostra como é a vida de uma mulher privilegiada de Gilead, não existe nenhuma chance de Agnes se tornar uma Aia ou uma criada, mas ela ainda é uma propriedade passada de seu pai para seu futuro marido, o que prova mais uma vez, que Gilead é um lugar terrível que oprime todas as mulheres, não importa que posições elas ocupem.
A terceira narradora é Daisy, que também nos conta sua história através de um depoimento, e que vive no Canadá, fora da república de Gilead, onde os direitos das mulheres são assegurados. Daisy é só uma adolescente, mas é contra as políticas da terra vizinha e vive se manifestando em relação a isso. Seu passado e seu futuro, no entanto, estão ligados a Gilead de maneiras que ela nem imagina. Daisy é a personagem que tem a vida mais próxima de boa parte das mulheres que vivem no ocidente, em países que respeitam, ainda que não totalmente, os direitos das mulheres, a sua personagem passa por um caminho inverso ao de Tia Lydia e Agnes.
Os Testamentos é um livro extremamente bem pensando e muito bem construído, as três narradoras, que são muito diversas entre si e que parecem não terem nenhuma ligação no começo, vão, claro, se conectar com o tempo e serão responsáveis pelo futuro de Gilead. É interessante que essas mulheres representem justamente aspectos diferentes da sociedade, Tia Lydia é uma mulher dentro do regime, que tem acesso a informações que outras pessoas não teriam, Agnes é uma jovem cujo destino é ser esposa e Daisy é uma adolescente vivendo fora de Gilead, e que esses pontos de vistas complementem o ponto de vista de Offred, uma Aia, de O Conto da Aia. A vida de nenhuma dessas quatro mulheres é fácil ou justa, independente do lado em que elas estão.
Um dos pontos altos de Os Testamentos, e desse universo que Atwood criou, é que a sociedade de Gilead é muito bem construída, tudo faz muito sentido, e mesmo que o livro se passa em um futuro distópico não determinado, ele fala diretamente com os dias de hoje, talvez até mais com a atualidade do que com a época em que O Conto da Aia foi escrito. O segundo livro também é um pouco mais gentil com suas personagens femininas, uma vez que temos acesso a pessoas que antes eram consideradas vilãs, como Tia Lydia, aqui suas atitudes têm uma explicação. A obra é menos pesada que O Conto da Aia, a história de Offred é bem mais gráfica e mais terrível do que essas que acompanhamos em Os Testamentos, ainda que as políticas de Gilead sejam massacrantes e cruéis.
Atwood disse que escreveu Os Testamentos inspirada, primeiro pelo mundo em que vivemos atualmente, onde assistimos uma perigosa escalada do conservadorismo, segundo pelas diversas questões que ela recebia sobre como tinha sido o fim de Gilead, a obra tem como intenção responder essas perguntas e faz isso muito bem.
O livro é muito bem escrito, como é comum na bibliografia de Atwood, e é impossível largar Os Testamentos antes que se descubra, pelo menos, como que essas três narradoras se conectam. A ideia de uma continuação de um livro, que também é maravilhoso, escrita mais de trinta anos depois, pode parecer uma tentativa de reviver uma coisa que já não faz tanto sentido, mas não é o que acontece em Os Testamentos, porque todas as palavras são muito bem calculadas e fazem muito sentido dentro da trama, o livro é realmente incrível e muito surpreendente.
É importante ressaltar que embora Os Testamentos possa ser entendido por quem não leu O Conto da Aia, afinal de contas, ele tem algumas explicações de como Gilead funciona e de como são as leis e os costumes do local, é muito melhor chegar a essa obra depois de ler a primeira, porque não só algumas informações podem fazer falta, mas as duas obras também se completam de maneira magnifica.
Os Testamentos, como seu antecessor, é ao mesmo tempo uma obra assustadora, que imagina um futuro inquietante e perigoso, e um livro delicioso, onde o leitor não só absorve cada palavra de Atwood, como também entende toda a complexidade desse universo e automaticamente da nossa própria sociedade.
Título no Brasil: Os Testamentos
Título original: The Testaments
Autora: Margaret Atwood
Tradução: Simone Campos
Gênero: Ficção Cientifica, Distopia
Ano de lançamento: 2019
Editora: Rocco
Número de Páginas: 448
Foto: Fernanda Cavalcanti
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