“A escravidão era um processo que matava pouco a pouco”.
Dana Franklin é uma mulher negra de vinte e seis anos vivendo nos Estados Unidos dos anos 70, ela está mudando de apartamento com seu marido, Kevin, quando começa a se sentir enjoada e sente o mundo se mexer ao seu redor. Ela acorda em um campo e vê um garotinho se afogando, Dana o salva, mas é acusada pela mãe dele de tentar mata-lo e ameaçada pelo pai com uma arma. O medo a leva de volta a seu apartamento.
Antes que ela consiga se recuperar, ela sente a mesma coisa e acorda mais uma vez no mesmo lugar, mas dessa vez, o mesmo garoto está colocando fogo na casa e ela mais uma vez o salva. Dana logo descobre que ela está viajando no tempo para uma época pré-guerra civil, onde os negros eram escravizados e que ela se transporta toda vez que o mesmo garoto, Rufus Weylin, está em perigo.
Agora Dana precisa entender o que está acontecendo para então poder parar as viagens no tempo, enquanto tenta sobreviver nesse ambiente terrível.
Kindred: laços de sangue é narrado em primeira pessoa por Dana e começa com um prólogo, que na verdade, relata o final da história. Sabemos logo que Dana sobreviveu as suas viagens no tempo, mas não sabemos o que se deu por lá. O livro então se divide entre as viagens no tempo de Dana e alguns flashbacks que contam como ela conheceu e se casou com Kevin.
A ideia de narrar em primeira pessoa, por exemplo, é uma maneira de colocar o leitor dentro dessa história junto com Dana e assim acompanhar todos os terrores que ela vai enfrentar como uma mulher negra vivendo na época de escravidão. E fica claro que o cenário que temos pela frente é digno de um filme de terror.
Justamente por essa imersão na escravidão e na vida de pessoas escravizadas, já que Butler não fala só de Dana – que forjou papeis que a declaram como liberta -, como também fala de outros escravizados que vivem na fazenda do pai de Rufus, é que Kindred: laços de sangue pode ser considerado uma ficção histórica, ainda que exista um grande debate em torno do gênero do livro, a autora o considera uma fantasia, mas ele tem muitos elementos de ficção cientifica.
Kindred: laços de sangue de fato é uma mistura de todos esses gêneros, ele tem muitos dados históricos, ainda que Butler tenha dito que tentou suavizar os tons do que aconteceu na época da escravidão para que o livro alcançasse mais pessoas, inclusive pessoas brancas, ele também é uma fantasia, já que trabalha com questões fantásticas e sem explicação lógica, e também é uma ficção cientifica, uma vez que usa das viagens no tempo para falar de questões raciais. E é justamente isso que faz de Kindred: laços de sangue um livro tão incrível.
Dana, a protagonista, é uma mulher negra que, sem saber por que ou como, começa a viajar para o passado todas as vezes que Rufus Weylin corre perigo. Rufus é branco e em cada visita de Dana, ele está mais velho, então, na primeira vez que ela vai para lá ele é um garotinho, depois um pouco mais velho, então um adolescente, até que ele chega aos seus vinte e poucos anos. Enquanto o tempo passa de maneira mais rápida no passado, nos anos 70 – que seriam o presente -, se passam apenas minutos ou dias.
Dana descobre que a sua ligação com Rufus se dá porque ele é seu ancestral, que terá filhos com uma de suas escravas, o que faz com que Dana se sinta na obrigação de manter Rufus vivo, se Rufus morrer antes de ser pai, Dana não nascerá. Rufus também é a única pessoa que sabe que Dana vem do futuro e com o tempo, ele se torna dependente dela, Rufus é praticamente incapaz de viver sem Dana e ele faz de tudo para que ela não consiga voltar para a sua época – Dana consegue voltar para casa quando sente medo -.
Mas em função disso, a dinâmica entre Rufus e Dana é diferente da dinâmica dele com qualquer outro personagem negro da trama, pelo menos, no começo. Dana conhece Rufus quando ele é bem criança e ela resolve que vai educá-lo de maneira que ele cresça e se torne um homem diferente do que o pai dele é, mas com o tempo, vemos que o ambiente molda Rufus e ele se torna cada vez mais parecido com o pai, ainda que escute Dana. Ele não poupa recursos para obrigar Alice, a outra ancestral de Dana, a ficar com ele, mas o leitor percebe que ela despreza Rufus e que todo o “relacionamento” dos dois é baseado em medo, obrigação, violência e estupro.
A própria Dana volta mudada de suas viagens, especialmente de algumas onde ela passa anos presa no passado, suas opiniões, que são atuais e até modernas para os anos 70, precisam se adequar ao tempo que ela vive, já que sua vida está em risco constante. O mesmo acontece com Kevin, o marido de Dana, que abraçado com ela, acaba viajando para o passado junto, em uma ocasião. Kevin é um homem branco – e Butler esconde isso até o último momento possível, causando uma surpresa nos leitores -, e no passado ele finge ser o patrão de Dana, mas até ele começa a se comportar de maneira diferente quando começa a conviver com outros homens brancos que acreditam que negros não são seres humanos e sim, propriedades.
É importante dizer que Kindred: laços de sangue é um livro muito violento, embora essa violência seja necessária para a trama, ela nunca se dá de maneira gratuita, a intenção é mostrar como era a escravidão e como viviam – ou sobreviviam – os negros escravizados, através disso e da inserção de uma mulher moderna, orgulhosa de sua raça e de suas origens, em um mundo terrível e cheio de perigos, especialmente para ela, que Butler demonstra todo o horror da escravidão e a barbárie que a humanidade é capaz de cometer contra outros seres humanos.
O livro, no entanto, não tem personagens completamente bons ou completamente maus. Até o pai de Rufus, Tom, que é descrito inicialmente como cruel até com o próprio filho, tem seus momentos mais humanos, já Rufus segue o caminho contrário, ele é um garoto decente, mas se torna um homem cruel.
Ainda que a leitura de Kindred: laços de sangue seja difícil, por suas cenas que representam crueldades, a leitura é rápida e muito interessante, a narração em primeira pessoa nos coloca junto com Dana, e assim, podemos sentir empatia por ela e por todos os personagens escravizados. A escrita de Butler também é incrível, o que ajuda muito.
Kindred: laços de sangue é uma ficção cientifica que usa dos elementos fantásticos para falar de temas reais, como racismo e escravidão, e dessa maneira, alcança públicos diferentes que normalmente não se interessariam por assuntos tão importantes.
Título no Brasil: Kindred: laços de sangue
Título original: Kindred
Autora: Octavia E. Butler
Tradução: Carolina Caires Coelho
Gênero: Ficção História, Ficção Cientifica, Fantasia
Ano de lançamento: 1979
Editora: Morro Branco
Número de Páginas: 432
Foto: Fernanda Cavalcanti
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